O sistema registral imobiliário brasileiro é um dos pilares da segurança jurídica nas relações patrimoniais, e o procedimento de dúvida registral emerge como instrumento essencial nesse contexto. Trata-se de um mecanismo que permite ao oficial de registro, ao identificar irregularidades em um título apresentado, submeter a questão ao controle judicial, garantindo a legitimidade dos atos registrais e a proteção dos direitos envolvidos. Mas como funciona esse processo? E quais os limites e desafios que ele enfrenta na prática?
A base normativa da dúvida está na Lei nº 6.015/73, conhecida como Lei dos Registros Públicos. Seu artigo 198 estabelece que, ao deparar-se com um impedimento que comprometa a validade ou eficácia de um registro, o oficial deve formalizar por escrito a exigência necessária ao interessado. Caso este discorde ou não consiga cumpri-la, poderá requerer ao registrador que suscite a dúvida, iniciando um procedimento administrativo.
A Lei nº 8.935/94, em seu artigo 30, inciso XII, confere ao registrador a atribuição de submeter ao juízo competente as dúvidas suscitadas, observando os trâmites legais. Ao identificar um impedimento ao registro, o registrador dispõe de dez dias úteis para reunir a documentação necessária e notificar o apresentante, expondo, de forma fundamentada, as razões da recusa. A partir da notificação, o apresentante terá o prazo de quinze dias úteis para apresentar impugnação. Encerrado esse prazo, o registrador encaminhará a dúvida ao juízo competente, acompanhada de suas razões e da impugnação do apresentante. Em regra, a análise caberá ao Corregedor Permanente ou, em grau recursal, a um órgão colegiado, como o Conselho Superior da Magistratura.
Esse mecanismo repousa sobre princípios fundamentais do direito registral: a disponibilidade, que exige a ausência de ônus sobre o bem; a continuidade, que assegura a regularidade da cadeia dominial; e a especialização, que demanda precisão na descrição do imóvel.
Como ensina Walter Ceneviva[1], a dúvida não é um litígio, mas um pedido administrativo em que o registrador busca a chancela judicial para sua exigência. Sua natureza, conforme o artigo 204 da Lei nº 6.015/73, é eminentemente administrativa, o que significa que a decisão não gera coisa julgada material, podendo ser reavaliada diante de novos fatos ou alterações normativas.
João Pedro Lamana Paiva afirma que, no processo de dúvida previsto no art. 207 da Lei de Registros Públicos, somente serão devidas custas quando a dúvida for julgada procedente, cabendo ao interessado efetuá-las. O Oficial de Registro, em qualquer hipótese, está isento do pagamento, pois age no exercício regular de sua função, sem possuir interesse juridicamente protegido no desfecho da decisão. A lei também não prevê o pagamento de honorários advocatícios, uma vez que a sucumbência pressupõe a existência de lide — o que não se verifica em procedimento de natureza estritamente administrativa.
Na prática, o procedimento revela nuances regionais e desafios interpretativos. Em São Paulo, por exemplo, a dúvida aplica-se exclusivamente aos atos de registro, enquanto averbações seguem o rito do “pedido de providências”, sob a alçada do Corregedor-Geral da Justiça. Um caso emblemático da 1ª Vara de Registros Públicos[2] da Capital Paulista ilustra a possibilidade de flexibilização: ali, autorizou-se uma adjudicação compulsória mesmo sem os documentos originais do imóvel, ante a inviabilidade de cumprimento da exigência.
Já a figura da “dúvida inversa” — em que o próprio interessado provoca o juízo para contestar as exigências do Registrador — divide opiniões. Em São Paulo, ela é admitida se houver prenotação no livro de protocolo, mas no Rio de Janeiro é rejeitada por ausência de previsão legal expressa.
Essa divergência ganhou contornos claros no voto do desembargador Ricardo Dip[3], que critica a dúvida inversa por seus riscos à segurança jurídica. Para ele, ao permitir que o interessado acione diretamente o juízo, sem passar pelo protocolo formal previsto no artigo 198 da Lei nº 6.015/73, cria-se um atalho que desrespeita preceitos básicos do processo registral, como a existência de uma prenotação válida. Dip alerta que tal prática, longe de agilizar, frequentemente resulta em delongas e frustrações, como demonstra o histórico de casos malsucedidos. Seu argumento é simples, mas poderoso: a ausência de um fundamento legal sólido compromete a estabilidade do sistema.
Outro ponto merece atenção: o tabelião de notas não tem competência para suscitar dúvidas. Sua função, conforme os artigos 6º e 7º da Lei nº 8.935/94, limita-se a interpretar a vontade das partes e formalizá-la no instrumento adequado. Ele pode, no entanto, atuar como assistente simples no procedimento, defendendo o ato que lavrou.
Já a prova na dúvida registral restringe-se à legalidade formal do título, diferentemente dos processos judiciais tradicionais, onde a instrução probatória é mais ampla. Nestes casos, o interessado pode recorrer a medidas como mandado de segurança ou ações declaratórias para sanar irregularidades, o que evidencia os limites do mecanismo.
Ao final, o que se constata é que a dúvida registral desempenha um papel crucial na fiscalização dos registros imobiliários. Ao impedir a inscrição de títulos irregulares, ela preserva a estabilidade patrimonial e previne litígios futuros, promovendo confiança nas transações imobiliárias. Contudo, sua eficácia depende de um equilíbrio delicado: de um lado, a rigidez necessária para proteger o sistema; de outro, a flexibilidade que atenda às demandas práticas sem sacrificar a segurança jurídica. Enquanto esse equilíbrio não se consolida, o procedimento segue como um espelho das virtudes e fragilidades do modelo registral brasileiro.
REFERÊNCIAS
SARMENTO FILHO, E. S. C. A dúvida registrária. In: COUTO, M. C. R.; SANTOS, F. J. R.; SOUZA, E. P. R. (org.). Coleção Cadernos IRIB. São Paulo: IRIB, 2012. v. 3, p. 8.
CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 371.
MIGALHAS. Notas devolutivas e suscitação de dúvida. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/359054/notas-devolutivas-e-suscitacao-de-duvida. Acesso em: 15 mar. 2025, às 08:00.
PAIVA, João Pedro Lamana. Procedimento de dúvida registral: evolução dos sistemas registrais e notariais no século XXI. 5. ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2023. p. 92. ePub.
[1] Ceneviva, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada, 14ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.371
[2] 1ªVRP/SP Proc. 1027428-43.2014.8.26.0100 Disponibilização 29/10/2014
[3] TJSP; Apelação Cível 0013913-10.2013.8.26.0482; Relator (a): Pereira Calças; Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Presidente Prudente – 4ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 21/06/2016; Data de Registro: 07/11/2016

Thiago Silva de Oliveira – Advogado formado pelo Instituto Superior de Ciências Aplicadas 2016. Pós – Graduação em Advocacia Civil 2023. OAB/SP 400.097


