O superendividamento é um dos maiores problemas financeiros enfrentados pelas famílias brasileiras. Ele ocorre quando o consumidor, de boa-fé, não consegue pagar todas as suas dívidas de consumo sem comprometer o chamado mínimo existencial, ou seja, recursos básicos para moradia, alimentação, saúde, educação e transporte.
Em 2021, a Lei 14.181/21, conhecida como Lei do Superendividamento, alterou o Código de Defesa do Consumidor e trouxe mecanismos de prevenção e tratamento desse cenário.
Desde então, credores, devedores e o próprio Judiciário têm buscado equilibrar dois objetivos: garantir dignidade ao consumidor e assegurar sustentabilidade ao mercado de crédito.
O que mudou com a Lei do Superendividamento?
A legislação incluiu no CDC os artigos 104-A, 104-B e 104-C criando a chamada ação de repactuação de dívidas.
Esse procedimento funciona em duas etapas:
- Fase conciliatória: todos os credores são chamados para tentar um acordo coletivo com o consumidor. O plano de pagamento deve ter prazo máximo de 5 anos, tratar os credores de forma isonômica e preservar o mínimo existencial.
- Fase judicial: se não houver acordo, o juiz pode impor um plano, respeitando os mesmos limites legais.
O mínimo existencial: o maior desafio
A lei não definiu um valor fixo, e o tema acabou sendo regulamentado por decretos:
- Decreto 11.150/22: fixava em R$ 303,00 (25% do salário-mínimo da época).
- Decreto 11.567/23: ampliou para R$ 600,00.
Apesar da tentativa de padronização, muitos juízes têm flexibilizado o valor com base na realidade de cada caso. Há decisões que fixam o mínimo existencial em até um salário-mínimo, quando os custos básicos do consumidor não se compatibilizam com os valores definidos em decreto.
Principais pontos de atenção
- Prazo máximo: o plano não pode ultrapassar 5 anos.
- Boa-fé: o consumidor deve comprovar esforço real para negociar.
- Educação financeira: a lei também estimula programas preventivos.
- Exclusões: crédito rural, financiamento imobiliário e dívidas com garantia real não entram na repactuação.
- Credores: precisam demonstrar postura colaborativa, sob pena de agravar a inadimplência e judicializar ainda mais o processo.
Tensões em aberto
A Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento, não se aplica às pessoas jurídicas na condição de devedoras, mas altera de forma significativa a atuação das empresas como credoras.
- De um lado, a lei amplia a proteção ao consumidor, impondo novos deveres às instituições financeiras e fornecedores: informação clara, avaliação da capacidade de pagamento, vedação ao assédio comercial e publicidade responsável.
- De outro, permanece o desafio de evitar o “risco moral”, garantindo que a repactuação de dívidas não estimule o inadimplemento.
Na prática, as empresas precisam revisar suas políticas de crédito, cobrança e compliance, adotando uma postura preventiva e transparente. Mais do que obrigação legal, trata-se de uma estratégia de sustentabilidade no mercado de consumo.
Esse equilíbrio ainda está sendo construído pela jurisprudência, e os próximos anos serão decisivos para consolidar uma interpretação que seja socialmente justa e economicamente viável.
Conclui-se que o superendividamento deixou de ser um problema apenas individual para se tornar uma questão jurídica, social e econômica.
Para os advogados, o desafio é apresentar planos realistas e provas robustas da situação do consumidor. Para os credores, vale adotar práticas de crédito responsável e negociação efetiva. Já para o Judiciário, cabe interpretar o “mínimo existencial” de forma sensível à realidade das famílias brasileiras.
A Lei 14.181/21 é um marco, mas sua efetividade depende da forma como será aplicada nos tribunais e na prática cotidiana das relações de consumo.
Bruna Micaela de Sousa – Advogada graduada em 2018 pelo Instituto de Ciências Aplicadas – ISCA Faculdades. Sua área de atuação predominante é o Direito do Consumidor, com foco em demandas do Contencioso Cível. OAB/SP 473.603