No universo dos contratos de locação, a figura do fiador é essencial para a segurança jurídica do locador, garantindo o cumprimento das obrigações assumidas pelo locatário. Isso porque, como se sabe, a fiança é um contrato acessório que garante o cumprimento de uma obrigação principal.
Contudo, uma questão que frequentemente surge e gera dúvidas é a extensão da responsabilidade dessa garantia em caso de falecimento do fiador. Melhor dizendo, sua natureza personalíssima levanta indagações sobre sua permanência após a morte do garantidor.
No entanto, o Código Civil Brasileiro é claro ao abordar essa situação, estabelecendo limites bem definidos para a transmissão da dívida.
O Que Diz a Lei: O Artigo 836 do Código Civil
A regra fundamental que rege essa matéria está prevista no Artigo 836 do Código Civil, que dispõe: “A obrigação do fiador passa aos herdeiros; mas a responsabilidade da fiança se limita ao tempo decorrido até a morte do fiador, e não pode ultrapassar as forças da herança.”
Este dispositivo legal é a chave para desvendar a questão, pois estabelece dois pilares para a responsabilidade dos sucessores do fiador:
- Limitação Temporal: A obrigação do espólio ou dos herdeiros restringe-se às dívidas e encargos locatícios que se venceram até a data do falecimento do fiador. Todas as obrigações que surgirem após essa data não são de responsabilidade dos herdeiros ou do espólio, cessando, neste ponto, a garantia fidejussória.
- Limitação Patrimonial (Forças da Herança): Mesmo para as dívidas vencidas antes do óbito, a responsabilidade dos herdeiros não ultrapassa o limite do patrimônio herdado. Ou seja, os herdeiros respondem pela dívida na proporção da herança que lhes coube, nunca com seu patrimônio pessoal. Isso significa que, se a herança for insuficiente para cobrir a dívida, a execução se limitará aos bens deixados pelo falecido.
O que Diz a Jurisprudência
A aplicação do Art. 836 do Código Civil é reiterada pela jurisprudência pátria, que consolida esse entendimento. Repare nas ementas explanadas na sequência:
EMBARGOS DECLARATÓRIOS – OMISSÕES CONFIGURADAS – Prescrição da pretensão executiva – Inocorrência – Inércia injustificada do exequente não configurada – Exclusão do valor relativo ao acordo não junto na petição inicial da execução – Medida que se impõe, por se tratar de documento indispensável à comprovação do crédito – Prorrogação da fiança que não estava condicionada à implementação de qualquer condição prevista no acordo homologado nos autos da ação de despejo promovida pelo embargado – Validade da cláusula contratual que prevê a responsabilidade dos fiadores até a efetiva entrega das chaves – Garantia da locação que se estende até a devolução do imóvel – Prorrogação do contrato por prazo indeterminado que não se confunde com aditamento contratual, sendo inaplicável a Súmula 214 do STJ – Responsabilidade dos herdeiros do fiador falecido que deve ser limitada à data de seu falecimento e às forças da herança (art. 1.501 do CC/16) – Responsabilidade do cônjuge supérstite que permanece inalterada, vez que ela figurou como fiadora no contrato, e não mera anuente da operação – EMBARGOS PARCIALMENTE ACOLHIDOS, para sanar as omissões apontadas, com efeitos modificativos (TJ-SP – EMBDECCV: 92364416220088260000 SP 9236441-62.2008.8.26.0000, Relator: Luis Fernando Nishi, Data de Julgamento: 06/10/2022, 32ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/10/2022).
APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CONTRATO DE LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA DA EMBARGANTE. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. INSUBSISTÊNCIA. DÉBITO EXECUTADO ANTERIOR AO ÓBITO DOS FIADORES. RESPONSABILIDADE DOS HERDEIROS PELA GARANTIA PRESTADA ATÉ A DATA DA MORTE. Nos termos do art. 836 do Código Civil “a obrigação do fiador passa aos herdeiros; mas a responsabilidade da fiança se limita ao tempo decorrido até a morte do fiador, e não pode ultrapassar as forças da herança”. Assim, demonstrado que os encargos locatícios executados são anteriores ao dia do falecimento dos fiadores, os herdeiros/espólio são responsáveis pela obrigação assumida pelo de cujus. IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA. TESE SUSCITADA APÓS EXPEDIÇÃO DA CARTA DE ARREMATAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE ACOLHIMENTO DA TESE. PRECEDENTES. Ainda que matéria de ordem pública, “a impenhorabilidade do bem-de-família não pode ser arguida após a arrematação” (STJ, AR 4.525/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, j. 13-12-2017). RECURSO DESPROVIDO (TJ-SC – APL: 03060764520198240005, Relator: Sebastião César Evangelista, Data de Julgamento: 22/09/2022, Segunda Câmara de Direito Civil).
Portanto, as decisões dos tribunais, como as do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Tribunal de Justiça de Santa Catarina acima evidenciadas, corroboram que a responsabilidade do espólio ou dos herdeiros se mantém para os débitos anteriores ao óbito do fiador e dentro dos limites do que foi herdado.
A Fiança Conjunta: Fiadores e Principais Pagadores
Para além da regra já debatida, é importante destacar que, se houver outro fiador solidário no contrato, que tenha assinado como “fiador e principal pagador” e renunciado expressamente ao benefício de ordem, a sua responsabilidade não é alterada pelo falecimento do outro.
Em outras palavras, enquanto o espólio ou o herdeiro responde apenas pelo período anterior ao óbito do fiador falecido e limitado à herança, o fiador remanescente continua respondendo pela integralidade da dívida, incluindo as obrigações vencidas depois da morte do seu colega garantidor, da mesma forma que acontece com o próprio locatário.
Conclusão
A morte do fiador em um contrato de locação não extingue automaticamente todas as obrigações da fiança, mas as limita temporal e patrimonialmente. Para locadores, é fundamental ter clareza sobre esses termos, a fim de entender até onde a obrigação locatícia está assegurada e de quem o inadimplemento pode ser cobrado. Para o espólio e os herdeiros, o conhecimento dessas disposições legais é vital para gerir as responsabilidades deixadas pelo de cujus.
Cynthia Prado Pousa – Graduada em Direito pela FACAMP (Faculdades de Campinas) em 2018 e pós-graduada em Compliance pelo IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) em parceria com a Universidade de Coimbra em 2021. Atua na área cível com Recuperação de Crédito. OAB/SP 426.577