O direito está em constante evolução, e a promulgação de novas leis é parte inerente desse processo. No entanto, a incorporação de novas normas ao arcabouço jurídico, especialmente aquelas que impactam decisões judiciais já consolidadas, suscita um debate fundamental sobre a segurança jurídica, o direito adquirido e a intangibilidade da coisa julgada. A recente Lei nº 14.905/2024, que promove alterações no artigo 406 do Código Civil, exemplifica essa complexidade, ao levantar questionamentos sobre sua aplicabilidade e, mais especificamente, sua retroatividade em fases de cumprimento de sentença já em andamento.
Este artigo propõe-se a analisar a irretroatividade da Lei nº 14.905/2024 fundamentando-se nos princípios basilares do direito brasileiro. Nosso foco será demonstrar como a tentativa de alterar os encargos de mora em fase de execução judicial, quando já definidos por títulos executivos transitados em julgado, representa uma ameaça direta à estabilidade do sistema jurídico.
A Irretroatividade e a Segurança Jurídica: Pilares Inegociáveis do Ordenamento
A segurança jurídica é um dos pilares de um Estado de Direito, garantindo a previsibilidade das relações jurídicas e a estabilidade das decisões judiciais. Um de seus corolários mais importantes é o princípio da irretroatividade das leis, que impede que uma nova norma jurídica atinja fatos passados ou efeitos já produzidos sob a vigência da lei anterior.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, é inequívoca ao estabelecer que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Esses institutos são essenciais para a pacificação social e a confiança no sistema de justiça, impedindo que partes que obtiveram um direito reconhecido judicialmente vejam esse direito alterado ou suprimido por uma legislação posterior.
A Lei nº 14.905/2024, embora promulgada em 1º de julho de 2024, estipula em seu artigo 5º que, exceto por uma parte específica do artigo 2º, seus efeitos entrarão em vigor apenas “60 (sessenta) dias após a data de sua publicação”. Mais importante ainda, a lei não prevê expressamente qualquer disposição acerca da retroatividade de seus efeitos. Isso significa que as modificações relativas aos encargos de mora só produzirão efeitos para o futuro, a partir do momento em que a lei estiver plenamente em vigor.
Assim, aplicar a nova redação do artigo 406 do Código Civil a um processo em fase de cumprimento de sentença, cujos juros e correção monetária já foram estabelecidos em sentença e acórdão transitados em julgado, configura uma grave violação a princípios fundamentais:
Violação à Coisa Julgada: Quando um título executivo judicial, formado por uma sentença e/ou acórdão, define de forma expressa os índices de juros e correção monetária, essa decisão se torna imutável e indiscutível. Alterar esses índices em fase de execução é desrespeitar a autoridade da coisa julgada.
Afronta ao Direito Adquirido e ao Ato Jurídico Perfeito: O direito à quantia atualizada pelos índices fixados no título já foi incorporado ao patrimônio jurídico do credor. A nova lei não pode, sob pena de inconstitucionalidade, prejudicar um direito já consolidado ou um ato jurídico que se aperfeiçoou sob a égide da legislação anterior
Comprometimento da Segurança Jurídica: A constante mudança nos parâmetros de cálculo em uma fase avançada do processo, após anos de tramitação e decisões definitivas, gera incerteza, imprevisibilidade e desconfiança no sistema. A previsibilidade das normas é crucial para que as partes possam conduzir suas vidas e negócios com base em regras claras e estáveis.
A jurisprudência dos tribunais superiores e estaduais tem reiteradamente reforçado essa compreensão. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se posicionado de forma clara no sentido de que a alteração dos índices de correção monetária e juros de mora estabelecidos em título judicial na fase de cumprimento de sentença configura violação da coisa julgada. Julgados recentes do STJ (e.g., AgInt no AREsp 2.606.648/RS, j. 23/09/2024; AgInt no AREsp n. 2.551.197/RS, j. 12/08/2024; AgInt no AREsp n. 1.914.152/DF, j. 23/10/2023) corroboram este entendimento, aplicando a Súmula 83/STJ.
No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) tem proferido decisões que enfatizam a irretroatividade da Lei nº 14.905/2024 e a prevalência da coisa julgada. Precedentes (e.g., Agravo de Instrumento 2324529-39.2024.8.26.0000, j. 25/10/2024; Agravo de Instrumento 2011831-40.2025.8.26.0000, j. 15/04/2025; Agravo de Instrumento 2086811-55.2025.8.26.0000, j. 21/05/2025) reforçam a tese de que a substituição dos índices expressamente fixados no título executivo pela taxa SELIC, na fase de cumprimento de sentença, configura ofensa à coisa julgada. Tais precedentes demonstram um consenso jurisprudencial sobre a matéria, salvaguardando a estabilidade das decisões judiciais.
Em suma, a defesa da irretroatividade da Lei nº 14.905/2024 é imperativa para a preservação dos princípios que regem o direito processual e material brasileiro. A tentativa de aplicar novas taxas e índices de forma retroativa a decisões judiciais já transitadas em julgado não só desrespeita a coisa julgada e o direito adquirido, como também compromete a segurança jurídica de todo o sistema.
A jurisprudência consolidada demonstra que a estabilidade do título executivo judicial deve prevalecer sobre quaisquer inovações legislativas que não prevejam expressamente sua retroatividade, especialmente quando estas poderiam prejudicar a parte que já teve seu direito reconhecido.
Assim, qualquer decisão que desconsidere esses preceitos merece revisão. É fundamental que os tribunais mantenham os encargos de mora fixados nos títulos executivos já definitivos. Somente por meio da estrita observância a esses princípios é possível garantir a integridade da jurisdição e assegurar que a justiça se realize de forma plena e previsível.
Felipe de Castro Leite Pinheiro – Advogado graduado em 2009 pela PUC-Campinas, com especialização em Direito Empresarial pela Unisal-Campinas. Sua área de atuação predominante é a Cível. OAB/SP 300.777