No universo do Direito Processual Civil, a impenhorabilidade de verbas de natureza alimentar é um princípio fundamental, ancorado no artigo 833, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC). Essa regra visa proteger a subsistência do devedor e de sua família, assegurando-lhes o mínimo para uma vida digna.
Nesse contexto, é comum a crença de que qualquer valor oriundo de uma relação de trabalho é absolutamente intocável. No entanto, a jurisprudência pátria tem evoluído, clarificando que essa proteção não é absoluta, especialmente quando se trata de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) já sacado e de certas verbas rescisórias de natureza indenizatória.
FGTS: Da Proteção em Conta Vinculada à Penhorabilidade em Conta Corrente
O FGTS, por sua natureza, tem um propósito social claro: formar uma poupança compulsória para o trabalhador, a ser utilizada em momentos específicos como a demissão sem justa causa, aposentadoria ou compra da casa própria. Enquanto os valores estão depositados na conta vinculada do FGTS, sua impenhorabilidade é, de fato, a regra, conforme a Lei nº 8.036/90 e o já mencionado art. 833, IV, do CPC.
O cenário muda drasticamente, contudo, a partir do momento em que o trabalhador efetua o saque desses valores. Uma vez que o FGTS é creditado em conta corrente, especialmente se essa conta possui alta movimentação e o montante se mistura a outros recursos, ele perde sua natureza original de verba alimentar. O valor sacado passa a integrar o patrimônio disponível do devedor, refletindo a sua livre fruição e, assim, podendo ser penhorado.
A jurisprudência é pacífica nesse entendimento. O TJSP, por exemplo, já decidiu que: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. Cumprimento de sentença. Penhora de quantia recebida a título de FGTS, creditada em conta corrente. Utilização da conta para pagamento de despesas cotidianas, inclusive quanto aos recursos do FGTS. Possibilidade de penhora. Inaplicabilidade do art. 833, X, do CPC. Valores que se integraram ao patrimônio do devedor. Formação de reserva financeira. Impenhorabilidade afastada. Recurso desprovido” (TJSP: Agravo de Instrumento nº 2220030-48.2017.8.26.0000).
Verbas Rescisórias: A Distinção entre Salário e Indenização
Outro ponto crucial reside na natureza das verbas rescisórias. Nem todas as quantias pagas na rescisão de um contrato de trabalho possuem caráter salarial e, consequentemente, alimentar. É fundamental fazer a distinção entre:
- Verbas de natureza salarial: São aquelas destinadas à subsistência do trabalhador, como o saldo de salário, horas extras, entre outras. Estas, sim, gozam da proteção da impenhorabilidade, ressalvadas as exceções legais (como pensão alimentícia).
- Verbas de natureza indenizatória: São quantias que visam compensar o trabalhador por perdas ou danos decorrentes da rescisão, não se destinando diretamente à sua subsistência imediata. Exemplos incluem o aviso prévio indenizado, férias proporcionais e seu terço constitucional (não gozadas), o 13º salário proporcional indenizado e a Participação nos Lucros e Resultados (PLR).
A jurisprudência tem reiteradamente afirmado que as verbas rescisórias de natureza puramente indenizatória, por não se destinarem à manutenção ordinária do executado e por constituírem um ativo patrimonial disponível, são plenamente penhoráveis. Conforme o TJ-SP: “AGRAVO DE INSTRUMENTO – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – AÇÃO CONDENATÓRIA POR ILÍCITO CONTRATUAL – PENHORA DE VALORES PERCEBIDOS EM RELAÇÃO EMPREGATÍCIA – SALÁRIOS, PLR E VERBAS RESCISÓRIAS – NATUREZA DISTINTA. Recurso em face de decisão que, em autos de cumprimento de sentença condenatória, indeferiu a penhora sobre verbas de titularidade do devedor, por aplicação da vedação do artigo 833, IV, do CPC – Insurgência do credor que se acolhe parcialmente, pois, garantia possível de recair sobre PLR e verbas rescisórias, se existentes, em razão da natureza indenizatória de tais, de forma diversa do que ocorre com os salários, quantia somente penhorável para satisfação de créditos da mesma natureza, do que não se trata a hipótese dos autos. Recurso parcialmente provido” (TJ-SP: Agravo de Instrumento nº 2086437-83.2018.8.26.0000). Isso afasta a proteção da impenhorabilidade do artigo 833, IV, do CPC para tais valores.
Conclui-se, pois, que a impenhorabilidade de verbas trabalhistas não é um escudo supremo. O Direito Processual Civil é dinâmico e exige de seus operadores uma análise perspicaz da realidade fática e da constante evolução jurisprudencial para aplicar as normas de forma justa e eficaz.
Para clientes credores e colegas advogados, esse conhecimento abre novas e legítimas avenidas para a satisfação de créditos, exigindo uma investigação minuciosa da origem e do destino das verbas do devedor.
Cynthia Prado Pousa – Graduada em Direito pela FACAMP (Faculdades de Campinas) em 2018 e pós-graduada em Compliance pelo IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) em parceria com a Universidade de Coimbra em 2021. Atua na área cível com Recuperação de Crédito. OAB/SP 426.577