A complexidade das relações contratuais que envolvem a alienação fiduciária de bens imóveis no Brasil tem sido tema de significativas discussões jurisprudenciais. O recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial 2.135.500/GO oferece uma contribuição importante ao esclarecer as consequências jurídicas da falta de registro do contrato de alienação fiduciária, especialmente quando este registro ocorre tardiamente, após a instauração de uma ação rescisória pelo comprador do imóvel. A decisão do STJ, firmada sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, gera implicações importantes para a aplicação da Lei 9.514/1997 e sua interação com o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
A Lei 9.514/1997, que regula a alienação fiduciária de bens imóveis, estabelece, em seu artigo 23, que a propriedade fiduciária se constitui exclusivamente com o registro do contrato no cartório de registro de imóveis. Essa exigência visa garantir a transparência e a segurança das transações imobiliárias, fornecendo uma base legal sólida para a recuperação do crédito, caso o comprador inadimplente não cumpra com suas obrigações. O registro do contrato, portanto, não é uma formalidade qualquer, mas um requisito essencial para a configuração do regime jurídico da alienação fiduciária, conforme a jurisprudência consolidada do STJ.
No caso em análise, a vendedora do imóvel, antes de efetuar o registro, deixou transitar o prazo de dois anos sem adotar a medida necessária para garantir o regime fiduciário sobre a propriedade. Após o ajuizamento de ação rescisória pelos compradores, que alegavam falta de condições financeiras para dar continuidade ao negócio, a empresa vendedora registrou o contrato de alienação fiduciária. Essa atitude, claramente tardia, suscitou a questão central do processo: poderia a vendedora, ao registrar o contrato após o ajuizamento da ação rescisória, se valer das prerrogativas da Lei 9.514/1997, afastando a aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC)?
A resposta dada pelo STJ foi firme e clara: a alienante não poderia fazer uso da Lei 9.514/1997, pois o registro realizado após o ajuizamento da ação não atendia ao princípio da boa-fé contratual. A ministra Nancy Andrighi, ao proferir seu voto, destacou que o registro tardio do contrato não poderia ser interpretado como uma tentativa legítima de constituir a propriedade fiduciária, mas, sim, como uma manobra para afastar a aplicação do CDC e da jurisprudência mais favorável ao consumidor.
A decisão do STJ reflete o entendimento de que a alienante perdeu o direito à execução extrajudicial prevista na Lei 9.514/1997, uma vez que o registro do contrato foi feito com o intuito de evitar as consequências de uma rescisão contratual que já havia sido pedida judicialmente. Essa interpretação reforça a ideia de que a legislação não deve ser utilizada de forma abusiva, como meio de contornar direitos que o consumidor possui em situações de inadimplência ou de dificuldades financeiras.
Ao aplicar o Código de Defesa do Consumidor, o tribunal de origem reconheceu que a vendedora agiu de forma prejudicial à parte compradora, uma vez que optou por registrar o contrato apenas após o ajuizamento da ação rescisória. A jurisprudência do STJ, especialmente no que se refere ao Tema 1095, reforça a necessidade de que o registro do contrato seja realizado de maneira tempestiva, para que o regime da alienação fiduciária se efetive de maneira regular e sem subterfúgios.
A importância dessa decisão reside não apenas no esclarecimento da aplicação do artigo 23 da Lei 9.514/1997, mas também no reconhecimento do caráter protetivo do Código de Defesa do Consumidor, que visa equilibrar as relações contratuais e evitar abusos por parte dos prestadores de serviços ou fornecedores. A jurisprudência construída ao longo dos anos no STJ demonstra que a formalidade do registro, embora essencial para a configuração da propriedade fiduciária, não pode ser manipulada com o intuito de prejudicar o consumidor ou de evitar a aplicação das normas que garantem o seu direito à rescisão contratual em determinadas condições.
Além disso, a decisão também reafirma a importância de se observar a boa-fé nas relações contratuais, especialmente em situações que envolvem a alienação de bens imóveis. A vendedora, ao omitir o registro do contrato por dois anos, demonstrou uma postura contrária à boa-fé objetiva, ao tentar se beneficiar de um mecanismo legal após o ajuizamento da ação. Este comportamento, longe de ser protegido pela legislação, foi interpretado pelo STJ como uma tentativa de manipulação do sistema jurídico para afastar os efeitos da rescisão contratual, o que não pode ser permitido.
Assim, a decisão no Recurso Especial 2.135.500/GO traz um ensinamento valioso para a aplicação da Lei 9.514/1997: o registro do contrato de alienação fiduciária deve ser realizado no momento devido, e não pode ser postergado de maneira estratégica para fins de afastar normas protetivas do consumidor. A jurisprudência do STJ, alinhada com os princípios do CDC, reforça que, embora as partes possam estabelecer livremente os termos do contrato, o exercício do direito de rescisão e a proteção do consumidor não podem ser cerceados por atos processuais ou contratuais que visem burlar a aplicação das leis que regulam as relações de consumo.
Thiago Silva de Oliveira – Advogado formado pelo Instituto Superior de Ciências Aplicadas 2016. Pós – Graduação em Advocacia Civil 2023. OAB/SP 400.097