Nos últimos anos cresceu a atenção e a preocupação sobre a interface entre condições de trabalho, adoecimento mental (incluindo burnout) e comportamentos autodestrutivos, como ideação e suicídio.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que mais de um bilhão de pessoas em todo o planeta vive com algum tipo de transtorno mental, incluindo ansiedade e depressão, e que ambientes de trabalho pobres — com excesso de carga, baixa autonomia, insegurança e discriminação — elevam risco de adoecimento mental. A OMS também calculou que 12 bilhões de dias úteis são perdidos por ano por depressão e ansiedade, com forte impacto econômico e social.
Estudos clínicos têm identificado associação entre exaustão profissional (burnout) e ideação suicida; mesmo controlando depressão, níveis elevados de exaustão aumentam o risco de pensamentos suicidas em trabalhadores. Isso não prova causalidade universal, mas estabelece uma relação epidemiológica preocupante.
No Brasil, a Síndrome de Burnout é reconhecida como distúrbio vinculado a condições de trabalho; órgãos de saúde pública e boletas epidemiológicos do Ministério da Saúde têm tratado do tema e da evolução dos registros de violência autoprovocada/suicídio, especialmente após a pandemia da COVID-19.
Estimativas e pesquisas nacionais mostram índices elevados de sintomas relacionados a burnout em diversos setores (há estudos apontando prevalências substanciais, por exemplo entre profissionais de saúde).
Além disso, taxas de suicídio entre pessoas em idade produtiva aumentaram nas últimas décadas em algumas faixas etárias/ocupações. Esses números mostram que suicídio relacionado ao trabalho direto ou indiretamente é uma realidade relevante para empregadores e advogados.
Além do drama humano, surgem questões jurídicas: até que ponto o empregador pode ser responsabilizado civilmente pelo suicídio de um empregado? Quais provas, políticas e medidas empresariais reduzem esse risco e protegem juridicamente a empresa?
A responsabilidade do empregador por suicídio praticado por empregado não é automática. Em termos gerais, para haver obrigação indenizatória costuma-se exigir o preenchimento dos requisitos legais, caracterizadores da responsabilidade civil, quais sejam: 1) o dano, ou seja, o suicídio consumado ou a tentativa que gerou lesão/decesso; 2) nexo de causalidade, mediante prova de que condições criadas pelo empregador (assédio, sobrecarga, omissão de medidas de proteção, tratamento degradante, etc.) contribuíram de modo relevante para o adoecimento que levou ao ato e 3) culpa ou ilicitude do empregador, através de conduta omissiva ou comissiva que viole deveres de proteção ao trabalhador (por exemplo, persistente assédio moral documentado, ausência de medidas mínimas diante de risco conhecido).
No âmbito trabalhista, há decisões e entendimentos que tratam do suicídio/lesão autoprovocada como possível acidente de trabalho ou como decorrente de doença do trabalho, desde que demonstrado o nexo. Tribunais trabalhistas brasileiros já reconheceram responsabilidade do empregador quando há prova robusta de que o ambiente ou a conduta empresarial foram determinantes do adoecimento. Entretanto, cada caso exige prova pericial e probatória circunstanciada.
A jurisprudência brasileira é plural: há decisões que reconhecem a possibilidade de equiparar suicídio relacionado a adoecimento mental como acidente do trabalho/doença ocupacional quando há prova do nexo; há também decisões que não reconhecem responsabilidade quando o nexo não é demonstrado.
A título de exemplo, vale transcrever o julgado abaixo, no qual a empresa foi responsabilizada pela tentativa de suicídio praticada pela colaboradora, que sofria assédio moral:
“ASSÉDIO MORAL. ADOECIMENTO OCUPACIONAL. DANOS MORAIS. 1. O assédio moral é configurado quando o empregador ou seus prepostos, por meio de atos repetidos ou de ocorrência única, atingirem negativamente a dignidade psíquica do trabalhador, de forma a abalar o ambiente de trabalho, tornando-o inóspito para o indivíduo. 2. A importância do tema é reforçada pela Convenção 190 da OIT, que reconhece o direito de todas as pessoas a um futuro do trabalho livre de assédio e violência. Embora ainda não esteja ratificada pelo Brasil, a convenção constitui fonte material do direito (art . 8º da CLT). 3. No caso, o adoecimento mental grave da autora, com episódio de tentativa de suicídio, está diretamente relacionado ao assédio moral sofrido no trabalho. Além de ser apelidada com epítetos desqualificantes, como “mimosa” e “cobra”, a autora era tratada com excessivo rigor pela chefia, degradando o ambiente de trabalho. 4. Diante do ato ilícito praticado pela empregadora, a reparação civil é medida que se impõe. (TRT-3 – ROT: 0010298-95.2023.5.03.0047, Relator.: Juíza Convocada Renata Lopes Vale, Primeira Turma)”
Apenas para reflexão, antes da Emenda Constitucional 45 de 2004, que ampliou a competência da Justiça do Trabalho, para julgar acidente de trabalho, muitas decisões da Justiça Comum não reconheciam o nexo de causalidade entre a tentativa de suicídio e o ambiente de trabalho:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. SUSPEITA DE FRAUDE BANCÁRIA. AFASTAMENTO DE FUNCIONÁRIO PARA INVESTIGAÇÃO. SUICÍDIO. EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO. LESÃO MORAL NÃO CARACTERIZADA. 1. A obrigação de indenizar decorrente da responsabilidade civil subjetiva pressupõe a existência concomitante de três elementos, quais sejam: a ilicitude da conduta, o dano e o nexo causal entre este e aquela. 2. O afastamento de empregado de suas funções cotidianas, com o fim de investigar suposto envolvimento em fraudes bancárias, consiste em exercício regular de direito por parte da instituição financeira, inexistindo nos autos qualquer comprovação de que o constrangimento daí advindo tenha provocado o suicídio do funcionário. 3. Não havendo a apelante se desincumbido de seu ônus probatório, nos termos do artigo 333, inciso I, do Código de Processo Civil, pois não demonstrou que o recorrido agiu com má-fé, erro crasso, ou dolo, a improcedência dos pedidos iniciais é medida que se impõe. APELAÇÃO CONHECIDA, PORÉM DESPROVIDA. (TJ-GO – AC: 02903505020088090129 PONTALINA, Relator.: DR(A) . FERNANDO DE CASTRO MESQUITA, Data de Julgamento: 31/01/2012, 6A CAMARA CIVEL, Data de Publicação: DJ 1009 de 23/02/2012)”
Ou seja, para que seja configurada a responsabilidade civil, deve haver comprovação do ato ilícito e do nexo causal e dano.
Assim, para evitar que se alegue omissão por parte da empregadora, é importante a adoção de medidas para reduzir o risco real de adoecimento e suicídio de funcionários e mitigar o risco jurídico, tais quais o mapeamento de fatores como carga de trabalho, controle, clareza de função, apoio social, jornadas e demandas extremas, metas razoáveis, pausas programadas, políticas contra horas extras abusivas e sobrecarga crônica.
A prática de políticas contra assédio moral, criação de programas de saúde mental, canais seguros para denúncias anônimas, com investigação imparcial e medidas disciplinares, além do aconselhamento psicológico/psiquiátrico, também revelam importantes medidas de prevenção e promoção de bem-estar no ambiente de trabalho.
Vale lembrar que em 26/05/2026, entrará em vigor a NR-1, que passará a exigir a avaliação e gestão dos riscos psicossociais no Programa de Gerenciamento de Riscos.
A existência e aplicação efetiva de medidas preventivas reduzem tanto a incidência de problemas de saúde mental em meio aos funcionários quanto a probabilidade de sucesso de ações indenizatórias contra a empresa.
Marina Ramos Marques – Advogada graduada em 2014 pela PUC-Campinas, com especialização em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Cursando MBA na USP/Esalq. Sua área de atuação predominante é a Cível. OAB/SP 363.718